Jobim está a tocar para mim. Está aqui sentado, à minha beira, a olhar-me de vez em quando, como se procurasse, a cada acorde que arranca das suas teclas de marfim, o meu sorriso. Há muito que não o escutava. Há muito que me sentia desligada desta incomensurável sensibilidade e desta tão entranhante forma de estar. Há alturas assim, em que falhamos os nossos sonhos e os nossos compromissos pessoais em nome nem sabemos bem do quê. De coisas que na altura nos parecem mais provavéis, mais significativas. Mas é quando o escuro baixa nos nossos dias que tendemos a avaliar da veracidade dessas nossas opções. Nem sempre as nossas razões são plausíveis, nem sempre os nossos sonhos são justos. Normalmente, por definição, os sonhos não são justos. A vida também não. E é ela quem, tipicamente, nos cria limites e entraves que levamos uma vida toda a curar e a entender. Devia ser ilegal haver limites para os sonhos. Devia ser proibido racionalizar os nossos sonhos, adaptá-los à realidade, restringi-los a esse critério insultuoso que é a razoabilidade. Às vezes olho para trás e vejo-me cheia de garra, de guerra, de guelra no sangue. Vejo-me dona do mundo, imparável, implacável. Devo estar mesmo a envelhecer. Já não tenho o mesmo ritmo, o mesmo poder, a mesma vontade, a mesma determinação. Agora pauto-me por esse conceito miserável da razoabilidade. Não sou ou não faço porque não é razoável que o faça ou que o seja. Porque tudo e todos à minha volta, de repente, passaram a ser mais importantes ou mais pesados em termos de decisão. Já não sou só eu que conto, ja não me tenho só a mim. Agora sou eu e a minha vida, e as minhas responsabilidades e as minhas limitações e a minha imagem e a minha consciência e a minha paciência e a minha razoabilidade. Agora há livros que me ensinam a Ser e gente que me aconselha o que é melhor. Já não sou só eu e os meus livros ou os meus discos ou a minha poesia. Já não estou sozinha mas sinto-me muito mais só. Ando a dormir com livros dos outros, com músicas que não canto e esta infidelidade pesa-me por dentro como toneladas de aço que me afundam todos os dias. Quero os meus sonhos de volta. Intactos, de preferência. Com a mesma sede de viver, com os mesmos contornos, com as mesmas cores. Não quero ter que me adaptar ou ter que adaptá-los. Não quero outras escolhas que não as primeiras, não quero outras filas que não as da frente.
(suspiro)
(socorro!!!!)
Sim Jobim, eu sei. "Fundamental é mesmo amar. É impossível ser feliz sozinho"
Há realmente algumas pessoas que são, aparentemente, frias, distantes, egocêntricas, arrogantes, individualistas, indiferentes, insensíveis, inatingíveis, voluntariamente solitárias.
Vão passando pela vida incólumes às emoções, às dores de alma, suportando as tristezas com um sorriso nos lábios, recusando-se a abrir a guarda, a sentir, a sofrer.
Aguentam tudo com estoicismo, encolhendo os ombros ao que não tem remédio, seguindo em frente sem se deterem perante as adversidades.
Há realmente algumas pessoas daquela raça rara que nunca deixam ninguém entrar, que nunca se dão, que vivem sem nunca sentirem nada intensamente.
Há momentos que são aparentemente simples e banais mas que me dão muito gozo.
Tenho convivido com um pitorrinho de quatro anos, daqueles que têm uma curiosidade e energia inesgotáveis.
Um dia destes, para o manter mais calmo enquanto tomava café, dei-lhe uma moeda, dizendo-lhe que era mágica, para ele a guardar bem que depois lha pedia de volta.
Passados uns minutos ouvi-a a cair no chão e perguntei-lhe pela minha moeda.
Olhou para as próprias mãos, olhou para mesa, olhou para mim e respondeu descontraidamente "é mágica, desapareceu", fazendo-me rir a bom rir com a forma lógica e airosa com que resolveu a questão.
Gosto de brincar com este meu amiguinho que se estivesse ligado a um dínamo até fazia patanisca.
Por falar em patanisca, vou agora ali jantar meia dúzia delas, acompanhadas com um belo arroz de feijoca e um rosé bem fresquinho.
Mas, tal como deixámos de nos sensibilizar pelas imagens de fome, guerra e dramas que tais, por esse mundo fora, já nem damos por eles.
Aquilo que temos de bom é-nos banal, não reparamos, não o sentimos, não valorizamos.
Vivemos num cantinho do mundo calmo e muito agradável, em comparação com boa parte dele. A maioria de nós tem trabalho, casa, família, amigos, uma vida razoavelmente agradável.
No entanto passamos o tempo a lamuriar-nos por tudo e por nada, deixamo-nos invadir pelo tédio e andamos permanentemente em busca de algo que nem sabemos muito bem o que é.
O facto é que a vida não nos dá só estalos, também nos dá afagos diariamente e alguns deles bem grandes e quando menos esperamos.